No início do ano de 2011 publiquei “Lições de um quase professor” e em meados do ano de 2015 foi a vez de “Um professor do `Trem da Alegria`”, ambos com o mesmo conjunto de reflexões. Hoje retomo as ideias centrais que foram tratadas nas duas oportunidades, pois o tema continua atualíssimo.
São mais de vinte e seis anos atuando como servidora concursada da Educação do Estado do Rio Grande do Norte. Durante esse tempo acumulei muito aprendizado no cotidiano das escolas e na relação com o órgão central de gestão da Educação. São muitas histórias para compartilhar.
Uma bastante curiosa data do segundo semestre do ano de 2010. Na condição de coordenadora pedagógica da Escola Estadual Hegésippo Reis – de 1º ao 5º ano do ensino fundamental –, juntamente com a diretora, recebi um senhor de aproximadamente 50 anos, encaminhado pela Secretaria de Educação para assumir uma das turmas da escola. Um telefonema da Secretaria informara do encaminhamento. À partida já achei bastante curioso o reforço: “o professor está a caminho, num carro aqui da Secretaria. É uma maneira da gente ter a certeza de que ele foi”. Não tenho dúvidas: o desejo da gestora era resolver o problema da falta de professores na Escola.
Sentamos os três à mesa: eu, o pretenso professor e a diretora. Bastante simpático, desinibido, mas visivelmente ansioso e preocupado, o senhor não escondia o nervosismo. “Estou aqui para fazer um favor à professora, que pediu muito que eu assumisse uma turma aqui nesta escola. Ela está muito pressionada com a falta de professores nas escolas e a promotora da educação está exigindo que os professores lotados como técnicos da Secretaria, sejam encaminhados para as escolas. Ninguém quer sair de lá,” disparou.
Falei: “Seja muito bem vindo, sinta-se acolhido, mas esclareço que a escola nada tem a ver com esse favor que o senhor relata. É uma questão entre vocês. É importante que saiba que aqui desenvolvemos um trabalho sério, temos um projeto político-pedagógico com características próprias [relatei as principais]; cumprimos os 200 dias letivos e o tempo diário de atividades dos alunos. Aqui estudamos e planejamos durante um sábado por mês; as reuniões com os responsáveis pelos alunos acontecem à noite e durante o dia as atividades letivas acontecem normalmente. Senhor, aqui todo nosso trabalho parte de um profundo respeito pelas crianças e precisamos muito de profissionais que compartilhem dos nossos princípios.”
Mal conclui o raciocínio, ele emendou: “Você é coordenadora pedagógica, né? Olhe, vou logo lhe dizer que se eu ficar aqui você vai ter muito trabalho comigo. Eu entrei no Estado no Trem da Alegria, na década de 80, naquele tempo que não tinha concurso público e a gente arranjava contrato com os políticos. Arranjei um de professor. Passei pouco tempo numa escola e assim mesmo como inspetor. Depois fui para secretaria e outros órgãos. Nunca fui pra sala de aula. Esses anos sempre arranjei alguma gratificação para garantir o leite dos meninos. Eu não sei como vocês que trabalham em escola conseguem sobreviver com esse salário. Faz pouco tempo que me aconselharam fazer o curso de Pedagogia para melhorar o salário e fui fazer, até pensando na aposentadoria. Fiz o curso na… (citou a instituição de ensino superior), aquilo foi uma mãe e deu pra terminar. Não aprendi quase nada, não sei planejar… você vai ter trabalho, viu? Estou aguardando o plano de cargos para ver se melhora mesmo. Fico preocupado porque ganho um dinheiro bom acompanhando o programa… (cita o nome do programa), pelo MEC, e se vier pra cá deixo de receber. Com essas suas ideias do projeto daqui, você daria certo trabalhando nesse programa. Tem mais: faço um trabalho de… (cita o outro trabalho) por uma portaria da Secretaria de… (cita a secretaria de estado) e vou ter que faltar três dias por mês para viagens. Estou sendo bem sincero porque você falou que aqui tem essa coisa de respeitar muito as crianças.”
É claro que pela exiguidade deste espaço torna-se impossível relatar toda conversa e a riqueza dos detalhes. Terminei por dizer, ao sincero senhor, que não assumisse a turma caso tivesse a intenção de na sequência procurar um político, impondo uma nova mudança às crianças. Soube que, ao retornar à Secretaria, o quase “professor” clamou que o deixasse onde estava, ou seja, longe de escola.
Continuo a não entender qual é a motivação dos que prestam concurso público, na área de educação, cientes de que é para atuar nas escolas, mas na primeira oportunidade se afastam, mesmo em conflito com as normativas legais. Igualmente corajosa é a postura de quem os autoriza.
No que concerne à política de recursos humanos da educação estadual, é ilusória a tentativa de querer resolver o problema da baixa qualidade do ensino ofertado, mantendo a falta de professores nas salas de aula e de pedagogos nas coordenações pedagógicas dos projetos das escolas. De igual modo, não avançaremos com quem deseja distância do magistério. É fato!
Se os certames são realizados para atender necessidades com profissionais para servirem a escola e na escola, não nos assustemos se os que ingressaram/ingressarem na educação estadual, especialmente, nos últimos concursos públicos forem encaminhados às escolas. É o natural, o correto e o esperado.
Afinal, lugar de professor não é na escola?
Artigo publicado originalmente em julho de 2016.