O texto de hoje é uma espécie de continuidade das ideias que comecei a discutir, neste mesmo espaço, à semana passada. Antonio Nóvoa, pesquisador português, defende que o diálogo com a comunidade exige dos docentes “redefinirem o sentido social do seu trabalho”, pelo distanciamento “de filiações burocráticas e corporativas”. Eis que estamos diante de um desafio que arriscamos afirmar, que, em termos conceituais, a análise realizada pelo autor de Estrutura organizacional do sistema estadual paulista, continua atualíssima, inclusive no comparativo com outros estados da federação. O autor afirma: “A cultura burocrática que impregnou o modo de conduzir a rede estadual trouxe como consequência a rigidez na fixação de papéis“. As situações: “quando da divisão do trabalho, a impessoalidade no relacionamento entre alunos e professores, a alienação dos trabalhadores, o formalismo, a avaliação que privilegia mais a conformidade às regras do que aos objetivos e etc”.
Os dados empíricos da minha pesquisa de doutorado sustentam a pertinência de colocar a dimensão pedagógica numa posição de completa superioridade, em relação à administrativa, à financeira ou, de modo geral, aos processos burocráticos de todas as ordens. Para um dos meus entrevistados da Escola da Ponte, “a pedagogia é acima de tudo, é o que defendemos sempre, é o mais importante. As condições físicas não é o mais importante, a parte pedagógica, essa sim é mais importante e é o que acima de tudo defendemos.” O sentido da existência da escola é a sua condição de instituição educativa e, assim sendo, a dimensão político-pedagógica é o âmago, cabendo às demais a posição de atividades-meio, que só se justificam se facilita e não dificulta para que o pedagógico aconteça.
Na Escola da Ponte encontramos o respaldo empírico para defender a proeminência do pedagógico, seja pela história da instituição ou mesmo pelo seu presente. O passado denuncia que a Escola viveu por cerca de vinte e cinco anos, contando com um discreto setor administrativo, enquanto o presente diz que a sua ampliação para o atendimento aos três ciclos (semelhante aos ensinos fundamental e médio) trouxe consigo a necessidade de um aparato administrativo. Porém, este não é um ponto pacífico e há quem afirme que a crise que a Ponte atravessava decorria dessa multiplicidade de perspectivas e de encaminhamentos.
O aspecto pedagógico tem que prevalecer, mas há sempre uma barreira de uma administração. Um dos entrevistados avalia que a Escola da Ponte tem o privilégio de realmente ter dado um passo em frente, pela ousadia, portanto, do mentor do projeto, que arrisca. É uma pessoa teimosa.”
Quando as questões administrativas sobrepõem às pedagógicas, ocupando a maior parte do tempo das reuniões e subtraindo atenções da discussão pedagógica, nascem desencontros entre membros da equipe da Escola, sugerindo uma certa disputa sobre o que seria mais importante, se o administrativo ou o pedagógico. Tem que haver sempre uma estrutura administrativa para que tudo funcione.
Se for preciso conviver com alguma burocracia, e sempre será, resta predominar o bom senso para que, por exemplo, as discussões nas reuniões, majoritariamente, não sejam sobre os temas relacionados aos problemas administrativos da Escola. Uma escola não pode gastar um quarto do tempo, um quinto, a discutir essas coisas, a resolver essas coisas, não é possível. A propósito das lutas políticas, constante na pauta da Educação, a escola tem que ter em seu projeto a massa que desencadeia as práticas e os ingredientes que a mantém cheia de vitalidade.
Colocar o pedagógico na centralidade do processo faz com que os profissionais se organizem sem a preocupação de assumir funções que impliquem no afastamento do trabalho com as crianças. Coordenadores e gestores são antes de tudo professores que orientam os percursos dos estudantes diretamente nos espaços, num jeito de gerir que envolve docentes e discentes, atribuindo leveza ao cotidiano escolar. A comunidade, incluindo as famílias, luta em prol de um projeto educativo carregado por uma intencionalidade e é esse projeto que orienta a comunidade escolar para encontrar, na participação e na responsabilidade, os antídotos contra a alienação que a burocracia por vezes submete a todos.
A histórica práxis da Ponte evidencia que a informalidade é possível sem que se deixe de conferir seriedade ao trabalho pedagógico desenvolvido pela instituição escolar, considerando que o planejamento e a avaliação acontecem, necessariamente, levando em conta o quadro conceitual do projeto educativo e os objetivos curriculares. Eis que o caso pontista desconstrói o modelo que, em nome de um projeto educativo emancipador, a escola rompe com o excesso de obediência emanado dos órgãos externos.
A maneira original que uma escola escolhe para organizar os estudantes, espaços e tempos; de distribuir a equipe; de realizar a avaliação e de definir as progressões, mas, sobretudo, a sua metodologia, que rompe com a concepção de ensino na forma que é conhecido, com aulas, professor discorrendo sobre conteúdos, alunos enfileirados a transcreverem lições, entre outros dispositivos hegemônicos, evidencia, definitivamente, o estágio de superação com um ciclo de subjugamento da escola aos determinismos da burocracia e a um modelo que já provou que não produz resultados desejados.
A partir do protagonismo da sua equipe e o apoio das Famílias dos estudantes, a Escola deve ousar sair de uma espécie de fôrma, para implementar o seu próprio projeto, colocando o pedagógico no topo, para onde se olha e de onde se observa como se movimenta a comunidade escolar.
Texto escrito em setembro de 2016.