Os meus 26 anos de escola ensinaram que se a dimensão pedagógica, alma da escola, não for priorizada a instituição sempre terá enormes dificuldades de cumprir a sua função social. De igual modo, se a gestão pública minimiza a essencialidade da presença dos docentes e coordenadores pedagógicos, nas unidades de ensino, é porque se desvia do que deve ser prioridade numa política educacional.
Amiúde, as escolas públicas curvam-se perante um modelo organizacional cujas normalizações padronizadas sobrepõem-se à dimensão político-pedagógica e, portanto, ao que se espera seja mais razoável para o projeto educativo de cada instituição.
Reitero o que defendi há seis anos, em minha tese de doutorado em educação: não estou a sugerir total desvencilhamento de normas gerais, que funcionam como organizadoras do que se convencionou chamar de sistema de ensino, mas defendo que algumas sejam questionadas se, quando aplicadas, tolherem a possibilidade de cada escola construir a sua identidade e o cumprimento da sua finalidade precípua.
Durante a pesquisa na Escola da Ponte, por exemplo, um dos meus entrevistados, ensinou: “esta escola começou a ganhar força, a ganhar pernas pra andar, combatendo as leis, ultrapassando as leis, transgredindo. E foi conseguindo, e foi conseguindo e chegou aonde chegou”, porque, via de regra, há um descompasso entre os tempos e orientações dos órgãos centrais e as necessidades reais das escolas.
De Rossi, num estudo do ano de 2004 sobre a organização burocrática da escola, afirma: “quando diretores, supervisores e professores não transcendem a burocracia ou a organização, a dominação permanece dissimulada”. Quando acontece de tal forma, estamos diante da constatação que “as escolas não têm autonomia, os professores não são autônomos. Só é autônomo quem conduz a sua própria existência, no respeito à existência dos outros e só se pode conduzir com os outros”, menciona outro entrevistado, com base no conhecimento acumulado em décadas de implementação de um projeto educativo emancipador.
Frente à baixa formação política de uma parte dos que estão nas escolas e ao poço de contradições dos sistemas de ensino, as concepções que orientam a maneira de organizar as escolas “convergem e sinergizam para encarar o conhecimento no multideterminismo de imperativos, normas, proibições, rigidezes e bloqueios”, como destacou Edgar Morin, num trabalho de 2003. Um entrevistado da minha pesquisa que representa várias vozes, sentencia: “se há obediência hierárquica instituída, se as escolas são geridas numa lógica técnica, instrumental e administrativa, não tem nada a ver com autonomia,” base da cidadania plena.
Diante da necessidade de avanços, no que diz respeito à qualidade social da educação, para que a escola básica seja pública, no sentido referido por Gadotti, é urgente que a burocracia seja flexibilizada ou que as equipes das escolas assumam uma postura de rebeldia pedagógica em confronto com o conformismo e passividade, naturalizados nos meios educacionais. A postura da comunidade escolar, sobretudo da equipe pedagógica, é determinante para o fortalecimento do projeto da Escola, de modo que possa sobreviver independente da tendência política que prevaleça na gestão do sistema educacional.
O peso da burocracia que predomina no ensino português é analisado por outro entrevistado: “O currículo é fixado nacionalmente, as disciplinas são fixadas curricularmente, o número de horas, a carga de cada disciplina está definida nacionalmente, quem é que pode ser professor é definido nacionalmente. […] define os manuais”. No caso do Brasil nem tudo é definido nacionalmente, pois existem as redes de ensino estadual e municipal, mas a denúncia, guardada as proporções, bem se aplica à nossa realidade, inclusive ao mencionar que “é o Ministério quem define até quem é que vai trabalhar em cada escola.”
Por outro lado essas prerrogativas são discutíveis, quando experiências diferenciadas emergem das escolas e que acabam por reforçar a relevância da “desburocratização” da escola pública, de modo que sejam estimuladas a pensar autonomamente, a agir autonomamente e serem avaliadas pelos resultados.
Contudo, defendo projetos de escola amalgamados pelo estatuto da diferença, da clareza de uma identidade, da proeminência da autonomia para agir, conforme a sua realidade, de elevação da dimensão pedagógica. Não satisfaz, por exemplo, a padronização de documentos, como o projeto político-pedagógico e o regimento escolar, que são comuns se verificar escolas que produzem esses documentos, adaptando informações, até mesmo com base em modelos elaborados pelas próprias secretarias de educação, que insistem em exigir obediência a um teor formatado, ainda que isso não seja o razoável.
Numa análise histórica, Antônio Nóvoa coloca como “dilema da profissão docente”, a necessidade de “adaptação à diferença” e de gerirem para que as escolas superem os modelos, as padronizações, a uniformização, na maneira de se organizarem. Alcançar esse lugar requer, antes de tudo, a existência física de equipes completas e coesas, obcecadas por resultados, no âmbito de um projeto emancipador.
Texto escrito em setembro de 2016.